ontem, o cara que sempre ficava na dele se agitou, e apontava pro céu e gritava "vai cair, lá em cima vai cair!" e tentava tirar o macacão.
eu disse:
- se alguém não pode ficar pelado sequer num lugar que teoricamente abriga transgressores da nossa magnífica sociedade, não tá tudo muito errado enquanto todos acreditam que tá certo? é ofensivo um corpo humano sem roupa?
(não é ofensivo quando é o cadáver de um indigente no morgue da universidade)
todos escondem seu medo num outro que pode ser qualquer um.
***
Pague um bom salário a alguém. É praticamente infalível. Melhor: junte um bando, dê a cada um deles uma mesa com telefone e computador com internet, dê-lhes uma torta ao final de cada mês e um aperto de mão no dia do aniversário.
Eles serão seus, comprados e com recibinho e tudo. O dono, Dono com letra maiúscula. Dono de seu tempo, de seu amor-próprio.
Eles serão seus e se sentirão felizes em chamar sua atenção.
Cães. Com maços de ordens de serviço na boca ao invés de bolinhas de borracha, cães.
Eles serão fiéis e vigiarão o resto da matilha por você, ficarão à espreita: ao farejar o menor sinal de revolta, correrão e se esfregarão por entre suas pernas com a notícia ainda viva e fresca na boca.
Afague-os então, diga-lhes como é gratificante poder contar com criaturas assim, tão obedientes. Eles se aninharão a seus pés e ali ficarão durante o tempo que você quiser. Eles o idolatrarão, será para eles mais que os outros, mais que humano, um semi-deus. Um humano entre os cães.
Cães na sexta-feira 13
Foi numa sexta-feira à tarde isso. O ambiente já estava calmo, clima de domingo no ar. Robinfon o fuça comprida espreitava por cima dos ombros dos companheiros à procura de uma notícia viva - era o mais algoz dentre os matadores de notícias: matava-as e corria com elas na boca, frescas, e enroscava-se por entre as pernas de seu humano como se estivesse no cio. assim estava Robinfon o fuça comprida; Esteta o seios fartos estava sentado em sua cadeira de rodinhas, rodando em torno de si mesmo para estimular o suor - É saudável pra emagrecer, dizia.
Um dos filhotes aparece na porta, olhos esbugalhados, arfando.
- Achei algo que pode ser útil... um pouco sujo de lama, sinto muitíssimo, mas já tava assim quando encontrei. - disse o filhote
- Oh, tome um biscoito, fofo filhote, pegue o biscoito - isso. Sente-se aqui do meu lado e conte-me tudo, oh sim, tudo! - falou Robinfon o fuça comprida
O filhote segurou o biscoito entre as patas e deixou cair um envelope no chão. Robinfon o fuça comprida o recolheu e cheirou.
- Hum, sim sim, ainda está fresco, fresquíssimo! - constatou Robinfon o fuça comprida
Ao ouvir isso, Esteta o seios fartos parou de girar em torno de si na cadeira de rodinhas e se aproximou um pouco mais do filhote, assim: o filhote sentado numa cadeira, entretido com o biscoito, Robinfon o fuça comprida de pé em frente ao filhote, com as duas patas unidas em frente ao peito, e Esteta o seios fartos ao lado esquerdo de Robinfon o fuça comprida, em sua cadeira de rodinhas.
- Mas ora, veja só isto, veja Esteta: temos aqui alguém perfeito para o próximo sacrifício. - disse Robinfon o fuça comprida
- Deixa pra mim ver aqui, passa isso pra mim que eu quero! - falou Esteta o seios fartos, e num movimento incrivelmente ágil para o seu tamanho abocanhou o envelope
Robinfon o fuça comprida deu uma patada na orelha de Esteta o seios fartos e gritou:
- Seu porco rechonchudo, seu monstrinho, isto aqui não é uma tigela de lavagem e não há motivo para tanta euforia! Olhe só o que aconteceu, seu vermezinho!
Esteta o seios fartos estava com um pedaço do envelope na boca, cuspiu. Voltou para a cadeira de rodinhas.
- Muito bem, acalme-se - isso. Vejamos o que diz aqui: - falou Robinfon o fuça comprida, já recomposto em seus modos dignos e refinados - aqui diz, é uma prova explícita na verdade, a prova de que alguém cometeu um erro. Oh!
- Erro erro erro! Delícia! - disse Esteta o seios fartos e voltou a girar na cadeira de rodinhas
- Eu vou, Esteta, eu vou: fique aqui e apenas observe. - falou Robinfon o fuça comprida
Com o envelope na boca, Robinfon o fuça comprida caminhou mansamente até a porta do humano e pôs-se a arranhá-la. A porta foi aberta. Esfregou-se por entre as pernas do humano e deixou cair o envelope a seus pés. O humano leu atentamente os dizeres contidos no envelope e ao final disso encostou gentilmente a ponta do indicador na fuça de Robinfon o fuça comprida.
E Robinfon o fuça comprida voltou para o meio dos seus: mais uma vez, achara alguém que pudesse ser sacrificado no lugar dos seus ou dele mesmo. Ao menos por enquanto estavam expurgados, não seria dessa vez que pagariam o preço pela vida de cães que escolheram levar.
Eldorado, besouro sem sobrenome
Era um besouro entre os cães, esse Eldorado. Eram muitos cães e Eldorado esperava rosnados e outras coisas mais violentas que cães fazem sem ter motivo. Qualquer movimento e todos o olhavam – era um besouro e muitos cães. É verdade que eram cães de comportamento muito refinado e muito caros, do tipo que obedece mesmo; mas eram cães e ele era um besouro, para todo o sempre desconfiaria das intenções da matilha. tinha certeza de que eles já tinham um plano tramado para o caso de os ventos mudarem de direção.
Ora, ele estava ali para prestar seus serviços, tinha um contrato assinado que garantia sua imunidade e assegurava um relacionamento completamente profissional entre ele e os cães. Eram bons cães! Recostou-se na cadeira e relaxou – eram bons cães. Olhou para o cão sentado na mesa à sua frente, o olhava e estava com o canino esquerdo de fora. Descuido - não era nada além de um descuido. Eldorado não tinha dado nenhum motivo para que os cães o tratassem de forma hostil e eram cães refinados. Bobagem era essa mania de perseguição: eram tempos modernos e civilizados, tudo era fruto de sua imaginação e sabia que os cães seriam incapazes de lhe fazer qualquer coisa.
Da carapaça tirou um copo branco de plástico, foi até o galão de água mineral e o encheu. Voltou com ele na mão, caminhando devagar – o copo estava bem cheio. O ruim de voltar devagar é que sempre se chama mais atenção do que gostaria, e aquele ambiente já era detestável normalmente: caminhar devagar só piorava tudo. Não precisava desviar o olhar do copo para saber que vários pares de olhos deveriam estar-lhe acompanhando cada passo. Passou em frente à mesa de Robinfon o fuça comprida e sentiu um leve tremor a percorrer seu corpo; isso fez com que derramasse algumas gotas da água do copo no piso. Eldorado olhou para o piso e depois para Robinfon: Robinfon o olhava de volta. Ele ouviu, tinha certeza que ouviu um rosnado abafado vindo dele.
Hesitou durante alguns segundos, olhou para o copo. Robinfon o fuça comprida continuava acompanhando seus movimentos, apoiou os cotovelos sobre a mesa e o queixo sobre as duas patas para observá-lo mais atentamente. Num giro rápido de corpo inteiro, Eldorado aproveitou o embalo e jogou a água do copo toda na cara de Robinfon. O ambiente se aquietou; Robinfon passou a pata pela cara, prostrou-se sobre as quatro patas e avançou na direção do besouro. Eldorado não soube explicar por que fizera aquilo e sabia muito menos sobre o que fazer agora. Quando todos os cães começaram a levantar de suas mesas, a carapaça de Eldorado se abriu: há tanto tempo não usava suas asas que havia esquecido que tinha. Voou.
Olhou para trás quando já estava a uma altura segura: Robinfon o fuça comprida estapeava Esteta o seios fartos e o resto dos cães estava reunido em torno da cena fazendo grande alarido e fazendo nada.
Eldorado voaria e faria apenas isso pelo resto da vida: tinha asas.