segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Os santos loucos e os bobos da corte na Idade Média*

"Por mais paradoxal que possa parecer, o cristianismo valorizou a idéia da loucura, incorporando em sua doutrina a reverência pelos néscios e simples de espírito. Desde os evangelhos, é constante a referência aos tolos, crianças, desprovidos, ingênuos e ignorantes como os bem-aventurados, como os predestinados a herdar o reino dos céus e a compreender o sentido profundo das palavras de Cristo, o símbolo maior do louco-sábio. Nas palavras de São Paulo, em sua Epístola aos Coríntios, Deus teria escolhido os tolos do mundo para confundir os sábios: "Ninguém se engane a si mesmo; se algum entre vós se tem por sábio segundo este mundo, faça-se insensato para ser sábio. Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus, pois está escrito: 'Eu apanharei os sábios na sua própria astúcia'" (1Coríntios, 3, 18).

Entre as correntes ascéticas do monaquismo cristão, floresceu, já nos primeiros séculos da Idade Média, a idéia de que o estado da loucura era um dos caminhos que conduziam a Deus. Tal idéia estimulou o surgimento de tradição antiquíssima, reconhecida pela Igreja, do culto aos santos "loucos por amor a Cristo". Diversos cristãos piedosos do Oriente e do Ocidente, movidos por espiritualidade extrema, adotaram a insanidade como regra de vida, assumindo a aparência de rústicos, maltrapilhos e iletrados, agindo como imbecis e idiotas para transcender os conhecimentos e experiências profanas e alcançar a pureza da sabedoria plena.

Os praticantes da "loucura sagrada" nada tinham que ver com doentes mentais. A simulação da estultice pretendia criar um elo de ligação com Cristo, através do qual o místico e asceta pudesse participar de sua pobreza, humildade e abnegação, e sentir-se objeto de escárnio e zombaria como no momento do suplício no Calvário. Em público, o "louco por amor a Cristo" comportava-se como um bufão, um clown, um imbecil, mas, no interior dos recintos sagrados ou na solidão da noite, voltava a ser o homem de prece e meditação. Alguns, rompendo com as coisas do século, isolavam-se em locais ermos (deserto/floresta), passando a viver como "homem selvagem" - outra personificação da ingenuidade e da loucura na tradição medieval.

Nos meios profanos, a loucura (voluntária ou involuntária) também participava dessa espécie de dimensão cômica do sagrado. As aldeias e cidades alimentavam e mantinham seus "idiotas públicos", enquanto, nas cortes aristocráticas, os bobos, vestindo seus trajes característicos de cor verde, vermelha e amarela, empunhando a tradicional clava ou o cetro, seus chapéus cônicos com orelhas de asno (animal tipicamente ridículo), participavam de festas, jantares, e mesmo de cerimônias solenes, divertindo os espectadores com seus malabarismos e suas piadas. Podiam dirigir-se a qualquer um, fazer pilhérias, tecer comentários a respeito de quem quer que fosse, opinar sobre os assuntos discutidos e até revelar os segredos alheios, em tom jocoso ou satírico. Em todos esses ambientes, subsistia a crença de que tais personagens eram capazes de revelar as verdades ocultas e mistérios escondidos sob a aparência do óbvio.

O bobo da corte pretensamente via o que os outros não podiam ver, sabia verbalizar o futuro e conhecia antecipadamente o destino dos homens. Sua posição dentro da corte é interessante, pois ele não costumava ser sensato, comedido ou prudente como todos os demais deveriam ser. As atitudes do bobo revelam comportamento antitético, porém, a ele tudo era permitido e até incentivado. Se algum dos atingidos por suas piadas e acusações reagisse "a sério", estaria se denunciando. Além disso, a função do bufão participava da esfera do jocoso. Como duplo grotesco do rei, todas as palavras proferidas por alguém monstruoso e repulsivo só podiam fazer rir."

(*) trecho do livro Riso, Cultura e Sociedade na Idade Média, de José Rivair Macedo (2000, pp. 133-35)

Nenhum comentário:

Postar um comentário