quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Rosa Negra e a serpente

"O livro Contos para crianças, publicado no Brasil em 1912 e na Inglaterra em 1937, contém uma série de histórias cujo tema central é muitas vezes o mesmo: como uma pessoa negra pode tornar-se branca. Esse é, também, o núcleo narrativo do conto 'A princesa negrina'. Na história - que parece um misto de 'Bela Adormecida', 'A Bela e a Fera' e 'Branca de Neve', tudo isso aliado a narrativas bíblicas nos trópicos -, um bondoso casal real lamentava-se de sua má sorte: depois de muitos anos de matrimônio Suas Majestades ainda não haviam sido presenteados com a vinda de um herdeiro. No entanto, como recompensa por suas boas ações - afinal, nos contos de fadas os reis e cônjuges legítimos são sempre generosos -, o casal tem a oportunidade de fazer um último pedido à fada-madrinha. É a rainha que, comovida, exclama: 'Oh! Como eu gostaria de ter uma filha, mesmo que fosse escura como a noite que reina lá fora'. O pedido continha uma metáfora, mas foi atendido de forma literal, pois nasceu uma criança 'preta como o carvão'. E a figura do bebê escuro causou tal 'comoção' em todo reino, que a fada não teve outro remédio senão alterar sua primeira dádiva: não podendo mudar 'a cor preta na mimosa cor de leite', prometeu que, se a menina permanecesse no castelo até seu aniversário de dezesseis anos, teria sua cor subitamente transformada 'na cor branca que seus pais tanto almejavam'. Contudo, se desobedecessem à ordem, a profecia não se realizaria e o futuro dela não seria negro só na cor. Dessa maneira, Rosa Negra cresceu sendo descrita pelos poucos serviçais que com ela conviviam como 'terrivelmente preta' mas, 'a despeito dessa falta, imensamente bela'. Um dia, porém, a pequena princesa negra, isolada em seu palácio, foi tentada por uma serpente, que a convidou a sair pelo mundo. Inocente, e desconhecendo a promessa de seus pais, Rosa Negra deixou o palácio e imediatamente conheceu o horror e a traição, conforme previra sua madrinha. Em meio ao desespero, e tentando salvar-se do desamparo, concordou, por fim, em se casar com 'o animal mais asqueroso que existe sobre a Terra' - 'o odioso Urubucaru'. Após a cerimônia de casamento, já na noite de núpcias, a pobre princesa preta não conseguia conter o choro: não por causa da feição deformada de seu marido, e sim porque ela nunca mais seria branca. 'Eu agora perdi todas as esperanças de me tornar branca', lamentava-se nossa heroína em frente a seu não menos desafortunado esposo. Nesse momento algo surpreendente aconteceu: 'Rosa Negra viu seus braços envolverem o mais belo e nobre jovem homem que já se pôde imaginar, e Urubucaru, agora o Príncipe Diamante, tinha os meigos olhos fixos sobre a mais alva princesa que jamais se vira'. Final da história: belo e branco, o casal conheceu para sempre 'a real felicidade'.

Cena de A Princesa e o Sapo, da Disney

Quem conta um conto, aumenta um ponto. Se o dito é verdadeiro, nesse caso a insistência na idéia de branqueamento, o suposto de que quanto mais branco melhor, fala não apenas de um acaso ou de uma ingênua coincidência, presente nesse tipo de narrativa infantil, mas de uma série de valores dispersos na sociedade e presentes nos espaços pretensamente mais impróprios. A cor branca, poucas vezes explicitada, é sempre uma alusão, quase uma bênção." *


(*) trecho do texto Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na intimidade, de Lilia Moritz Schwarcz (1998, pp. 174-76)

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Life is allright on the Rhine

De volta ao quarto, e de volta a janela cuja paisagem decidiu-se pela estaticidade dos prédios intermináveis onde só o que muda de lugar é uma luz que se acende e outra que se apaga. Estranho pensar que embora haja movimento de passagem de pedestres e automóvies ou lotações, veículo de carga levando pessoas sabe se lá pra onde, os prédios não se movem. Fiz um lanche que antecederá a possível noite comemorativa e a impressão do queijo ter caído no chão, logo percebo ter sido o guardanapo pelo movimento demasiadamente mais lento de queda em relação a uma fatia de queijo,e nem preciso saber de física, não, embora aquela memória da faculdade de engenharia e arquitetura permaneça ali, com certeza o melhor cappuccino que já provei, ah sim como a memória está ali, até quando diria Ginzburg, será que nossas memórias tornaram-se HDs? Esqueço o pão na torradeira. Todos os dias é a imensidão dos prédios o que vejo, e paro, paro na janela deixando a vastidão me imergir, lembro das leis de Newton. Porque a diferença da cidade grande é que apesar das todas as gentes que te invadem o espaço todos os dias, é que tu continua sozinho olhando a imensidão da janela. É bom sentir que um porco estampado em uma caneca de porcelana fez alguém sorrir, alguém por quem se tem carinho. Postcards from Italy é o que ouço. Talvez um dia mande cartões postais do Reno também. Talvez a vida seja allright no Reno, talvez os dias sejam meus. Talvez os morangos ainda não tenham mofado na geladeira.