quarta-feira, 6 de abril de 2011

we the animals

ontem, fui até o hall buscar água e parei pra ouvir a história que a Gisele começava a contar. era sobre uma cena que ela viu no trabalho, o hospital psiquiátrico São Pedro. lá tem um cara que ficava pelado no pátio, na dele. daí ontem, os caras de branco arrumaram um macacão pra ele, coisa super-segura: as alças davam algumas voltas pelo pescoço, passavam pelas costas e ao redor da barriga e depois eram muitíssimo bem amarradas de volta às costas.
ontem, o cara que sempre ficava na dele se agitou, e apontava pro céu e gritava "vai cair, lá em cima vai cair!" e tentava tirar o macacão.
eu disse:
- se alguém não pode ficar pelado sequer num lugar que teoricamente abriga transgressores da nossa magnífica sociedade, não tá tudo muito errado enquanto todos acreditam que tá certo? é ofensivo um corpo humano sem roupa?
(não é ofensivo quando é o cadáver de um indigente no morgue da universidade)
todos escondem seu medo num outro que pode ser qualquer um.


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allora, as linhas abaixo foram escritas em 05, 13 e 19 de março de 2009. nessa época eu trabalhava numa empresa from hell (como muitas empresas em qualquer lugar do mundo). trabalhava 9h por dia, ganhava um salário risível e estudava todas as noites.
vocês nunca tiveram a sensação de não poder fazer nada do que se quer fazer onde está? como se o tempo em que você está ali não pudesse existir pra você: você existe para A Empresa, para O Colégio, para A Namorada. eu já senti isso, talvez vocês já tenham sentido.
nessa empresa, a tela do meu computador ficava virada de maneira que umas 20 pessoas podiam ver qualquer coisa que eu fizesse. certa vez, o trabalho do dia já estava feito e abri uma página do word pra notar uma idéia. fui chamada até a sala do Supervisor e repreendida: "é um trabalho que exige atenção, esteja atenta para quando chegar trabalho".
era como se eu não existisse enquanto estivesse na Empresa.
então comprei um caderninho com um porco na capa e escrevi essas linhas durante meu horário de almoço.
andava que nem um zumbi. de manhã cedo pegava um T3 entupido de gente pra ir até a zona norte trabalhar. às 18h eu corria até a parada do T8 pra encontrar meu amigo R. e ir até o Campus do Vale pra chegar sempre atrasada na aula, depois de um trajeto engarrafado de 1h~1h20.
um tempo depois, fiquei muito doente. não conseguia mais caminhar nem sentar nem nada sem sentir muita dor nas costas. fui consultar um médico, e ele pediu uns exames. continuei precisando ir trabalhar e ir na aula, era semana de provas. a dor aumentou. um dia deixei de ir na aula e fui até o hospital. lá, o doutor disse que devia ser algo nos ossos e me deu uma injeção. saí de lá pior, com ainda mais dor. entrei num ônibus e me arrastei até minha casa. no dia seguinte não consegui levantar da cama pra trabalhar, nem no outro. quando os exames ficaram prontos, fui consultar outro médico (pai do meu amigo R.) - que me examinou a ponto de dizer finalmente o que causava a dor.
precisei de uma semana de atestado pra ficar em casa me recuperando na cama.
no dia em que voltei a trabalhar, fui demitida.
então senti como se estivesse parada no meio de uma avenida que nunca vai parar por nada e ninguém faz diferença. e mesmo que eu morresse pelo dinheiro que precisava, seria só mais outra que morreu sem dinheiro nem ninguém que soubesse meu nome pra colocar um anúncio no obituário do jornal.


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(pra ler ouvindo Angel Dust ou Animals)


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Cães

Pague um bom salário a alguém. É praticamente infalível. Melhor: junte um bando, dê a cada um deles uma mesa com telefone e computador com internet, dê-lhes uma torta ao final de cada mês e um aperto de mão no dia do aniversário.
Eles serão seus, comprados e com recibinho e tudo. O dono, Dono com letra maiúscula. Dono de seu tempo, de seu amor-próprio.
Eles serão seus e se sentirão felizes em chamar sua atenção.
Cães. Com maços de ordens de serviço na boca ao invés de bolinhas de borracha, cães.
Eles serão fiéis e vigiarão o resto da matilha por você, ficarão à espreita: ao farejar o menor sinal de revolta, correrão e se esfregarão por entre suas pernas com a notícia ainda viva e fresca na boca.
Afague-os então, diga-lhes como é gratificante poder contar com criaturas assim, tão obedientes. Eles se aninharão a seus pés e ali ficarão durante o tempo que você quiser. Eles o idolatrarão, será para eles mais que os outros, mais que humano, um semi-deus. Um humano entre os cães.


Cães na sexta-feira 13

Foi numa sexta-feira à tarde isso. O ambiente já estava calmo, clima de domingo no ar. Robinfon o fuça comprida espreitava por cima dos ombros dos companheiros à procura de uma notícia viva - era o mais algoz dentre os matadores de notícias: matava-as e corria com elas na boca, frescas, e enroscava-se por entre as pernas de seu humano como se estivesse no cio. assim estava Robinfon o fuça comprida; Esteta o seios fartos estava sentado em sua cadeira de rodinhas, rodando em torno de si mesmo para estimular o suor - É saudável pra emagrecer, dizia.
Um dos filhotes aparece na porta, olhos esbugalhados, arfando.
- Achei algo que pode ser útil... um pouco sujo de lama, sinto muitíssimo, mas já tava assim quando encontrei. - disse o filhote
- Oh, tome um biscoito, fofo filhote, pegue o biscoito - isso. Sente-se aqui do meu lado e conte-me tudo, oh sim, tudo! - falou Robinfon o fuça comprida
O filhote segurou o biscoito entre as patas e deixou cair um envelope no chão. Robinfon o fuça comprida o recolheu e cheirou.
- Hum, sim sim, ainda está fresco, fresquíssimo! - constatou Robinfon o fuça comprida
Ao ouvir isso, Esteta o seios fartos parou de girar em torno de si na cadeira de rodinhas e se aproximou um pouco mais do filhote, assim: o filhote sentado numa cadeira, entretido com o biscoito, Robinfon o fuça comprida de pé em frente ao filhote, com as duas patas unidas em frente ao peito, e Esteta o seios fartos ao lado esquerdo de Robinfon o fuça comprida, em sua cadeira de rodinhas.
- Mas ora, veja só isto, veja Esteta: temos aqui alguém perfeito para o próximo sacrifício. - disse Robinfon o fuça comprida
- Deixa pra mim ver aqui, passa isso pra mim que eu quero! - falou Esteta o seios fartos, e num movimento incrivelmente ágil para o seu tamanho abocanhou o envelope
Robinfon o fuça comprida deu uma patada na orelha de Esteta o seios fartos e gritou:
- Seu porco rechonchudo, seu monstrinho, isto aqui não é uma tigela de lavagem e não há motivo para tanta euforia! Olhe só o que aconteceu, seu vermezinho!
Esteta o seios fartos estava com um pedaço do envelope na boca, cuspiu. Voltou para a cadeira de rodinhas.
- Muito bem, acalme-se - isso. Vejamos o que diz aqui: - falou Robinfon o fuça comprida, já recomposto em seus modos dignos e refinados - aqui diz, é uma prova explícita na verdade, a prova de que alguém cometeu um erro. Oh!
- Erro erro erro! Delícia! - disse Esteta o seios fartos e voltou a girar na cadeira de rodinhas
- Eu vou, Esteta, eu vou: fique aqui e apenas observe. - falou Robinfon o fuça comprida
Com o envelope na boca, Robinfon o fuça comprida caminhou mansamente até a porta do humano e pôs-se a arranhá-la. A porta foi aberta. Esfregou-se por entre as pernas do humano e deixou cair o envelope a seus pés. O humano leu atentamente os dizeres contidos no envelope e ao final disso encostou gentilmente a ponta do indicador na fuça de Robinfon o fuça comprida.
E Robinfon o fuça comprida voltou para o meio dos seus: mais uma vez, achara alguém que pudesse ser sacrificado no lugar dos seus ou dele mesmo. Ao menos por enquanto estavam expurgados, não seria dessa vez que pagariam o preço pela vida de cães que escolheram levar.


Eldorado, besouro sem sobrenome

Era um besouro entre os cães, esse Eldorado. Eram muitos cães e Eldorado esperava rosnados e outras coisas mais violentas que cães fazem sem ter motivo. Qualquer movimento e todos o olhavam – era um besouro e muitos cães. É verdade que eram cães de comportamento muito refinado e muito caros, do tipo que obedece mesmo; mas eram cães e ele era um besouro, para todo o sempre desconfiaria das intenções da matilha. tinha certeza de que eles já tinham um plano tramado para o caso de os ventos mudarem de direção.

Ora, ele estava ali para prestar seus serviços, tinha um contrato assinado que garantia sua imunidade e assegurava um relacionamento completamente profissional entre ele e os cães. Eram bons cães! Recostou-se na cadeira e relaxou – eram bons cães. Olhou para o cão sentado na mesa à sua frente, o olhava e estava com o canino esquerdo de fora. Descuido - não era nada além de um descuido. Eldorado não tinha dado nenhum motivo para que os cães o tratassem de forma hostil e eram cães refinados. Bobagem era essa mania de perseguição: eram tempos modernos e civilizados, tudo era fruto de sua imaginação e sabia que os cães seriam incapazes de lhe fazer qualquer coisa.

Da carapaça tirou um copo branco de plástico, foi até o galão de água mineral e o encheu. Voltou com ele na mão, caminhando devagar – o copo estava bem cheio. O ruim de voltar devagar é que sempre se chama mais atenção do que gostaria, e aquele ambiente já era detestável normalmente: caminhar devagar só piorava tudo. Não precisava desviar o olhar do copo para saber que vários pares de olhos deveriam estar-lhe acompanhando cada passo. Passou em frente à mesa de Robinfon o fuça comprida e sentiu um leve tremor a percorrer seu corpo; isso fez com que derramasse algumas gotas da água do copo no piso. Eldorado olhou para o piso e depois para Robinfon: Robinfon o olhava de volta. Ele ouviu, tinha certeza que ouviu um rosnado abafado vindo dele.

Hesitou durante alguns segundos, olhou para o copo. Robinfon o fuça comprida continuava acompanhando seus movimentos, apoiou os cotovelos sobre a mesa e o queixo sobre as duas patas para observá-lo mais atentamente. Num giro rápido de corpo inteiro, Eldorado aproveitou o embalo e jogou a água do copo toda na cara de Robinfon. O ambiente se aquietou; Robinfon passou a pata pela cara, prostrou-se sobre as quatro patas e avançou na direção do besouro. Eldorado não soube explicar por que fizera aquilo e sabia muito menos sobre o que fazer agora. Quando todos os cães começaram a levantar de suas mesas, a carapaça de Eldorado se abriu: há tanto tempo não usava suas asas que havia esquecido que tinha. Voou.

Olhou para trás quando já estava a uma altura segura: Robinfon o fuça comprida estapeava Esteta o seios fartos e o resto dos cães estava reunido em torno da cena fazendo grande alarido e fazendo nada.

Eldorado voaria e faria apenas isso pelo resto da vida: tinha asas.

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