quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Peixaria

Peixes congelados navegam num mar despedido. As mãos rudes de meu pai descamavam

esses esquecimentos. Alguma coisa ocre na pia da nossa antiga casa relembra-me esse cheiro

visgento. Eu pensei em te partir, mas a Barracuda estendida no mostruário da peixaria não

deixou. Aqueles olhos grandes vidrados de repente me comoveram, e alguma coisa misteriosa e

magnífica se revelou para mim. As sardinhas ressequidas imitavam cardumes de sardinhas vivas

no meio de um Atlântico de fedor e gelos empoeirados. Eu cheguei a pensar em conter esse

flato, mas foi mais forte do que eu. E comecei a chorar por toda a inumanidade por detrás do

fato de se pescar-se Arubas com rede de arrastão e, também, porque eu tive a certeza de que

nenhuma delas nunca mais voltariam. E eu era como aquela Barracuda, fedorenta e estagnada.

O chão molhado e gosmento, parecia uma ululante lesma viva, e eu, que nunca tive nojo

de lesmas nem de peixarias, senti-me enjoar. Mas contive o refluxo acido da minha infância

solitária e desmedida, enquanto minha mãe ia coser braguilhas e barras não consangüíneas. E

ao meu redor senhoras distintas escolhiam salmões viracundos, e empregadas-domésticas-de-

R$450,00-ao-mês hesitam entre homicídios triplamente qualificados e os files de merluza. E

o peixeiro me pareceu ainda mais gordo e peludo do que de fato era, tal como a bucetinha da

Samatha lá do Coiote. Então, eu tive medo, e nojo, desse sujeito.

Pensei ver vermes se arrastando pelo chão em turbas agitadas e alegres. E eles subia pelo

meus sapatos sujos e avançavam pela barra da minha calça jeans. Vinha-me coisas estranhas à

mente e de repente eu era um Barack Obama disfarçando em confiança minhas mãos vazias

de propostas concretas, enquanto recomendava ao Pentágono planejar a invasão do Irã. E essa

verdade revelada como náusea era um Sartre dizendo “We can!”. Já não podia mais prosseguir

com aquilo tudo, o conjunto das minhas possibilidades fracassadas materializaram-se e voam

em vórtice em torno da minha cabeça, e, pareceram para mim, como um jantar arroz-feijão-e-

bije. Eu já não tinha mais nada há fazer naquela peixaria e, agora, precisava fugir.

Mas os vermes me contiveram e perguntavam qualquer coisa inútil e sarcástica, e riam-se e a

pele daquela lesma gigantesca me prendia na sua gosma, que era morna. Veio-me uma cena

num filme, que já não me lembro mais qual é, em que um sujeito entra em uma buceta gigante.

Eu me peguei tentando convencer-me de que podia lutar contra aqueles vermes, e a lesma-

buceta gigante para obter novamente uma paz que nunca tive, eu me sentia ridículo como

se tentasse convencer alguém de que o Senado era realmente um mal necessário. Eu já não

tinha mais nada a fazer naquela peixaria, mas o visgo dos peixes mortos, a lesma, os vermes e

a buceta gigante não me deixavam sair. Então, eu percebi que nem as empregadas domésticas,

nem as madames, nem o peixeiro suspeitavam a minha tristeza, ninguém se importava, ou,

ao menos, pareciam se importar com o fato que eu estava nu e sujo, de que não tinha futuro

algum, de que o presente não passava de uma coleção de peixes mortos esquecendo lagos

de bobas asmáticas e faturas de cartão-de-crédito-que-eu-não-vou-pagar. E aquilo era mais

inumano do que o que faziam com as Arubas. Mas, nem eu, nem as Arubas, tínhamos para

onde fugir. E as coisas continuam iguais ao meu redor. Peixes despedidos navegando num

mar congelado...

14 e 15 de agosto, 2009.

Nenhum comentário:

Postar um comentário